O lado obscuro de Tintim
O lançamento mundial do filme Aventuras de Tintim, de Steven Spielberg, ressuscita antigos fantasmas do personagem criado por Hergé no final dos anos 1920
Extraído da Revista Aventuras na História.
por Cristine Kist / Ilustração: Glauco Diógenes | 28/11/2011 16h12
Nos 24 livros (um deles incompleto) lançados entre 1930 e 1986, Tintim retratou os conflitos do século 20 em passagens que, tanto hoje como na época, soavam politicamente incorretas. Em 5 décadas, Hergé colecionou processos, críticas, acusações e teve até de pedir desculpas pelas derrapadas de Tintim. As polêmicas continuaram após a morte do autor, em 1986, mas a série seguiu em alta e o filme reacende o interesse pelo personagem que ajudou a construir o retrato de um dos períodos mais turbulentos da história. As aventuras de Tintim começaram a ser publicadas quando Hergé virou editor do suplemento jovem do jornal Le Vingtième Siècle, de Bruxelas, na Bélgica. O quadrinista se baseou nos jornalistas mais famosos da época, enviados para cobrir grandes conflitos internacionais. Tintim trabalha para o próprio Le Petit Vingtième, como era chamado o suplemento, mas é o único jornalista do mundo que não parece preocupado com prazos ou com o envio de material para a redação.
Na sua primeira aparição, em 1929, ele viaja para a recém-fundada União Soviética. Na época com 22 anos, Hergé tinha ficado muito impressionado com um livro escrito pelo cônsul belga sobre as condições de trabalho no regime socialista e, por isso, optou pela URSS como destino. O país é retratado com grande exagero de estereótipos (ainda na 1ª página, Tintim diz ao chefe que enviará "cartões-postais, vodca e caviar", e Milu afirma ter ouvido falar que lá tem "pulgas" e "ratos"). Fica clara a postura anticomunista do autor. Mas, como o próprio Hergé comentou em entrevista a um programa de TV nos anos 1970, "Tintim no País dos Sovietes foi muito bem-recebido porque naquela época quase todo mundo era contra os bolcheviques".
Primeiras turbulências
Se a passagem pela URSS não trouxe grandes problemas, a 2ª viagem foi bem menos tranquila. Pelo menos para Hergé. Quando Tintim foi ao Congo, em 1931, o país africano ainda era uma colônia belga (a independência veio só em 1960) e os quadrinhos reproduziam a visão eurocentrista da época. Na 1ª versão do álbum, os congoleses falavam um francês primitivo e eram extremamente submissos. Em um dos trechos, Tintim substitui um professor em uma escola missionária e começa a aula apontando para um mapa da Europa: "Meus queridos amigos, hoje eu vou falar sobre o seu país: a Bélgica". Nas versões posteriores, o mapa foi substituído por um quadro negro, e a lição sobre a Bélgica por uma de matemática. Quando Hergé frequentava a escola (que ele odiava, por sinal), a suposta "condição inferior" dos negros ainda era ensinada como ciência pelos livros didáticos. Ele mesmo chegou a admitir em mais de uma oportunidade que o álbum retrata a visão ingênua da época.
Tiago Nogueira, editor da Companhia das Letras, que publica a série no Brasil, acha que o problema não é exclusivo desse livro: "Toda a série tem uma visão eurocentrista. É sempre a história do menino loiro desbravador que vai a países diferentes e leva conhecimento aos locais". Em 2007, um cidadão congolês pediu a um tribunal belga que Tintim no Congo fosse retirado do mercado. O processo ainda está correndo, e o resultado deve sair apenas em fevereiro do ano que vem. Mas até a ONG Peta, que defende os direitos dos animais, já se manifestou a favor de um boicote ao livro. Além de supostamente racista, Tintim também se mostra um grande fã de caçadas. Depois de atirar em veados (mata uma dúzia deles e diz que, "em todo caso, carne fresca é o que não vai faltar"), um jacaré e um elefante, mata e esfola um macaco para vestir sua pele. "Nós discutimos muito antes de publicar e, quando publicamos, optamos pela versão que já continha algumas modificações. Mas o fato é que é um clássico e representa a mentalidade de uma época", diz Nogueira.
Quando a Bélgica foi invadida pela Alemanha durante a 2ª Guerra, em 10 de maio de 1940, Hergé decidiu permanecer no país e passou a publicar as tirinhas de Tintim em um jornal que era controlado pelos nazistas. Daí para as acusações de que era simpatizante do regime alemão, foi um pulo. Mas a verdade é que ele próprio não se ajudou. Em A Estrela Misteriosa, álbum publicado justamente durante a ocupação, em 1942, duas personagens com características judaicas se perguntam se poderão dar calote em seus credores quando o fim do mundo é anunciado por um lunático (o trecho foi removido de edições posteriores). O grande vilão de A Estrela Misteriosa tinha um sobrenome judeu: Blumenstein. Hergé alegou que a escolha não tinha sido intencional e chegou a alterar o nome para Bohlwinkel. Infelizmente, só mais tarde alguém lembrou de avisar a Hergé que esse também era um sobrenome judeu. Com o fim da guerra, Hergé chegou a ser investigado pelo governo da Bélgica, mas foi inocentado. Ele ainda recebeu uma espécie de perdão público quando se uniu a um dos heróis da resistência belga, Raymond Leblanc, para a criação de uma revista sobre Tintim.
Simpatia pela China
A publicação de O Lótus Azul, 5º álbum da série, marcou uma virada na carreira de Hergé, como ele mesmo chegou a admitir em entrevistas: "Quando comecei, não tinha muita noção. Era só diversão para mim contar aquelas histórias". O Lótus Azul encerrou uma sequência de álbuns nos quais os países que serviam como cenário das narrativas eram retratados com base em estereótipos (depois dos russos comunistas e dos africanos abestalhados, Tintim ainda visitaria uma América ocupada quase somente por indígenas e mafiosos e uma Índia repleta de marajás). Hergé pareceu ter compreendido a dimensão do seu trabalho e pesquisou a fundo a cultura do país retratado - nesse caso, a China.
Depois de anunciar no final do 4º álbum, Os Cigarros do Faraó, que Tintim continuaria suas aventuras no Oriente, Hergé recebeu uma carta de um abade pedindo que pesquisasse sobre a história da China. Ele concordou, e o abade apresentou-o a Zhang Chongren, estudante chinês que passava uma temporada na Academia de Belas-Artes de Bruxelas. Os dois se entenderam tão bem que Chongren aparece como um dos persongens de O Lótus Azul: ele é Tchang, um garoto órfão que se torna amigo de Tintim depois de ser salvo por ele. Ainda durante a passagem pela China, Tintim visita uma casa de ópio e aparece chapado pela droga, uma versão mais branda da heroína. O álbum foi publicado em 1936, e as casas de ópio só foram fechadas pelo regime comunista de Mao Tsé-Tung, em 1949. Mas nem é preciso ir tão longe. Os detratores de Hergé condenam até a amizade de Tintim com o Capitão Haddock, um dos principais personagens da série. No começo, o capitão estava quase sempre bêbado e seria uma má influência para jovens leitores. O próprio Hergé acabou optando por transformá-lo com o tempo em um personagem de hábitos mais recatados. Até o que não aparece nas aventuras de Tintim causa polêmica.
Existe uma corrente que define Hergé como misógino, já que existe apenas uma personagem feminina que se destaca ao longo de todas as histórias: a espanhola Bianca Castafiore, uma soprano que adora cantar em momentos inapropriados. Hergé morreu em 1983, aos 75 anos. No processo movido na Bélgica pedindo o recolhimento de Tintim no Congo, quem luta a favor da obra é a editora francesa Casterman. No Brasil, a Companhia das Letras também defende a publicação do livro: "Não dá para limpar uma obra que foi escrita quando a mentalidade era diferente da nossa. Se isso fosse levado adiante, teríamos de repensar toda a literatura", diz Nogueira. Se as editoras se mantêm fiéis mesmo às obras mais controversas de Hergé, o mesmo não pode ser dito do próprio autor (e nem mesmo de seus fãs). "Ele não reeditou Tintim no País dos Sovietes por muito tempo porque considerava esse um trabalho inferior", explica Simon Doyle, responsável por um dos maiores sites dedicados a Tintim no mundo todo, o Tintinologist.org. "Talvez o mesmo possa ser feito com Tintim no Congo. Posso compreender a situação das vítimas de racismo e tenho que questionar o valor do livro hoje", afirma Doyle.
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